Tentar impedir aborto legal é crime e nova violação à criança vítima de estupro

São Paulo – A Justiça do Espírito Santo acatou pedido da Defensoria Pública do estado e ordenou ao Google, Twitter e Facebook que retirem de suas plataformas publicações com informações pessoais da menina de 10 anos que engravidou após estupro e que foi submetida, neste domingo (16), a um aborto legal. As informações foram expostas de forma indevida pela militante de extrema-direita Sara Fernanda Giromini, conhecida como Sara Winter. As plataformas têm 24 horas para tirar as informações do ar, sob multa de R$ 50 mil por dia, em caso de descumprimento. 
De acordo com o juízo do plantão da 5ª Região, Samuel Miranda Gonçalves Soares, os dados divulgados “causaram ainda mais constrangimento à menina e aos seus familiares”. Na liminar o magistrado considera que não se trata de “obstar o direito à liberdade de expressão”. “Entretanto, consoante se extrai dos autos os dados divulgados são oriundos de procedimento amparado por segredo de justiça”, destaca a decisão. 
Conhecida pelos atos antidemocráticos da milícia “300 do Brasil”, Sara teve acesso de forma ilegal aos detalhes do caso. Ela tornou público o primeiro nome da criança, divulgando também o endereço do hospital onde ela passaria pelo procedimento. Além de usar o termo “aborteiro” para se referir ao profissional que faria a operação. 

As violações do caso

Aos seguidores, a extremista ainda pedia que eles “rezassem” e “colocassem os joelhos no chão”. Sara já é investigada pelo inquérito das fake news do Supremo Tribunal Federal (STF), pelo qual chegou a ser presa. A antropóloga, pesquisadora e professora da UNB, Débora Diniz, ressaltou, em seu perfil no Twitter que o nome de uma vítima criança de um processo em segredo de Justiça não pode ser divulgado . 


 
Além da violação à preservação e aos direitos da criança estabelecidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a história da menina é cercada por outras violações. Violentada sexualmente, durante quatro anos, pelo tio, o caso só chegou à polícia no dia 8 de agosto, quando a criança deu entrada em um hospital do município de São Mateus, no Espírito Santo.
De acordo com reportagem do El País, a menina teve confirmada por exame de sangue a gestação de 22 semanas. Aos médicos e a uma assistente social, ela contou que era abusada pelo parente desde os seis anos. E que nunca havia contado sobre a violência por medo das ameaças de morte que sofria. Um boletim de ocorrência foi registrado, e o caso agora é investigado pela polícia e pelo Conselho Tutelar. Na quarta-feira (12), o juiz determinou a prisão preventiva do tio, que se encontra foragido. 

Judicialização do caso

A Secretaria de Assistência Social informou ao jornal que a criança vivia em “família extensa, com os avós”. Segundo a pasta, ela também era atendida pelo Centro de Referência de Assistência Social (Cras) da cidade. E que os familiares eram “participativos” e não davam indícios de que o crime estivesse acontecendo. A avó, ambulante, é identificada como uma pessoa presente na educação da menina, que só não estava por perto dela quando tinha que trabalhar. 
À Justiça, as duas deixaram claro que queriam, conforme previsto na legislação brasileira, realizar a interrupção da gravidez fruto de violência. Avó e neta, no entanto, tiveram que encarar uma verdadeira saga para ter o direito garantido. Desde 1940, o Código Penal garante a realização do procedimento em caso de estupro. Como também no caso do feto ser anencéfalo e quando a gestação representa um risco à vida da mulher. A criança, nesse caso, atende a dois dos três critérios. 
A legislação também observa que, mesmo em caso de suposto consentimento ao ato sexual, é configurado como estupro de vulnerável relações sexuais com menores de 14 anos. Apesar do amparo legal, no entanto, ela não conseguiu o procedimento em Vitória. Os médicos alegaram que a gravidez estaria avançada. A menina foi então levada pela avó ao Recife. Mas só passou pelo procedimento após autorização do juiz Antonio Moreira Fernandes, da Vara de Infância e da Juventude de São Mateus. E o que era para ser um procedimento sigiloso, foi totalmente exposto, contra a lei. 

Ato político

Na prática, o caso virou ainda uma “disputa político-ideológica”. Envolvendo ainda a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, que usou as redes sociais para condenar a decisão da Justiça. A ação de movimentos e políticos fundamentalistas obrigou quase também impediu a realização do procedimento legal no Recife. 

Reprodução
A extremista Sara Winter

Com as informações vazadas, fundamentalistas religiosos do chamado Movimento “Pró-vida” e do grupo católico pernambucano Porta Fidei se aglomeraram em frente ao hospital na tarde deste domingo (16). A manifestação atrapalhava o funcionamento normal da unidade, tentando ainda coagir a criança e a equipe médica sobre a pecha de “assassinos”.
Imagens do jornalista Jhonatan Campos, do programa Central do Brasil – uma produção da rede nacional de movimentos populares –, mostram ainda que, articulados de forma clandestina, o grupo tentou invadir o hospital. A polícia precisou intervir para barrar a invasão, mas permitiu que o protesto ilegal continuasse. 

Criminoso

Ao jornalista Glauco Faria, da Rádio Brasil Atual, Campos ainda contou que havia a intenção do grupo de fazer uma “vigília”. O que só não ocorreu pela presença dos Fórum de Mulheres de Pernambuco que, em solidariedade e proteção à criança, também foi à frente do hospital para lembrar os direitos e manifestar-se pela vida da vítima.
Na ocasião a integrante do fórum Elisa Aníbal, também participante da Frente Nacional contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto destacou que as ativistas estavam presentes naquele momento “para garantir um direito constitucional. Um direito à vida dessa menina para realizar um aborto legal. Para dizer que a vida dela importa”. 
“Porque os fundamentalistas, inclusive deputados fundamentalistas, estão aqui para dizer que a vida dessa menina não importa, que ela não vai cumprir o direito dela, legal, de fazer o aborto. Eles estão para chamar essa menina de assassina. E a gente está aqui para dizer que essa sociedade tem que levar em consideração que 70% dos casos de estupros no Brasil acontecem contra as crianças e adolescentes, dentro de casa. Eles não vão para a igreja deles atrás dos casos de estupro que acontecem lá dentro. Essa menina foi violentada duplamente, por um parente e pelo Estado, quando ela precisou recorrer à Justiça, algo que não era necessário, porque o procedimento já é garantido em lei”, destacou a ativista ao jornalista. 

Parlamentares contra a lei

O site Marco Zero Conteúdodenunciou a presença de parlamentares da chamada Bancada Evangélica no ato para constranger a vítima. A imprensa identificou que os deputados estaduais Joel da Harpa (PP), Clarissa Tércio (PSC), Clayton Collins (PP) e Teresinha Nunes (PSDB) juntaram-se aos fundamentalistas contra a vida da menina, criando também aglomeração. Harpa, por exemplo, tentou forçar a porta do hospital para invadir o local. 
Ao Jornal Brasil Atual, o cientista político Wagner Romão, professor do departamento de Ciência Política da Universidade de Campinas (Unicamp) chamou de “crime” a realização do protesto dos extremistas. E defendeu que em um Estado democrático de direitos, esses deputados “deveriam ter seus mandatos cassados” pela ofensiva contra a lei. 
“Todos lamentamos o que ocorreu com a menina, e lamentamos ainda mais que isso tenha se tornado público. Não era para se tornar público isso. E essa pessoa tem que ser criminalizada sim. Estamos numa espiral tão complicada de golpes e atentados à nossa Constituição, que espero que as medidas cabíveis sejam tomadas. Infelizmente, isso se tornou parte da disputa política hoje”, contestou Romão. 
Deputadas e movimentos agora cobram para saber como vazaram as informações pessoais da criança à extremista Sara Winter

Confira as entrevistas

Redação RBA: Clara Assunção