Tragédia Anunciada

Negligência do governo federal em relação à Cinemateca é ‘um crime’, diz pesquisadora

Eloá Chouzal teme que cópias únicas de filmes que já não podem ser restaurados tenham sido consumidas pelo incêndio, além de diversos documentos que contam a história do cinema nacional

Corpo de Bombeiros/PMESP

Em abril, trabalhadores da Cinemateca haviam alertado para o risco iminente de incêndio

Tiago Pereira, da RBA

Eloá Chouzal teme que cópias únicas de filmes que já não podem ser restaurados tenham sido consumidas pelo incêndio, além de diversos documentos que contam a história do cinema nacional

São Paulo – A historiadora Eloá Chouzal, membro da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA), ficou em “estado de choque” quando soube do incêndio que atingiu o galpão da Cinemateca Brasileira na Vila Leopoldina, zona oeste de São Paulo, nesta quinta-feira (29). Ela classifica o episódio não como um “desastre”, mas um “crime”, dada a negligência do governo Bolsonaro. E disse que não é possível minimizar o ocorrido, com a justificativa de que a sede da Cinemateca não foi atingida.

“A gente vem há um ano e meio alertando o governo sobre a iminência desse desastre. Para mim, é um crime. O coração da Cinemateca é o seu acervo. Se você não cuida, se não tem trabalhadores, técnicos especializados, que monitoram o que está acontecendo nesse acervo, ele está abandonado”, disse Eloá, em entrevista a Marilu Cabañas, para o Jornal Brasil Atual, nesta sexta-feira (30).

De acordo com a pesquisadora, o galpão abrigava registros fundamentais do audiovisual brasileiro que provavelmente foram perdidos. São documentos relativos à história da Embrafilme, do Conselho Nacional de Cinema (Concine) e do Instituto Nacional de Cinema (INC). Além disso, o local também abrigava cópias únicas de negativos que já se deterioraram e não podem mais serem copiados.

Nesse sentido, Eloá alerta que a sede da Cinemateca também corre perigo. Após sucessivas mobilizações da classe artística, a Secretaria Especial de Cultura liberou verbas para a contratação de serviços básicos de manutenção. Mas os técnicos que cuidavam do acervo, demitidos no ano passado, não foram substituídos. “Não adianta colocar segurança, jardineiro e manutenção predial, se o que importa, o coração, a alma da cinemateca, não está sendo cuidada”.

A Cinemateca é uma tragédia anunciada

“Há um ano e meio a gente vem fazendo manifestações de todos os tipos: presenciais, mesmo em meio à pandemia, nas redes, com pessoas do mundo inteiro. Inclusive com federações internacionais manifestando preocupação com o risco de perda desse patrimônio”, lembrou Eloá. Em abril, os trabalhadores da Cinemateca, além de intelectuais e políticos, divulgaram uma carta aberta alertando para o descaso do governo. Graças ao corte de verbas e a demissão de funcionários, a ameaça de incêndio era iminente.

Os ataques do governo Bolsonaro começaram ainda em 2019, quando o então ministro da Educação, Abraham Weintraub, decidiu romper, unilateralmente, o contrato com a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), que administrava a Cinemateca. 

Em junho de 2020, os trabalhadores da Cinemateca fizeram uma paralisação de 24 horas. No auge da pandemia, estavam sofrendo com atrasos de salários, deterioração das condições de trabalho e constante ameaça de demissões. Ao fim daquele mês, a empresa terceirizada contratada para a manutenção dos climatizadores necessários para a conservação dos filmes deixou de prestar serviço e a brigada de incêndios debandou. Até mesmo a prefeitura de São Paulo e o Ministério Público Federal (MPF) entraram com ação para reaver o controle do espaço.

Em meio a tudo isso, a Cinemateca foi transferida para a Secretaria Especial de Cultura. O titular da pasta, Mario Frias – que substituiu na função a atriz Regina Duarte, após sucessivos choques com classe artística – chegou até mesmo a anunciar que o acervo da Cinemateca seria transferido para Brasília. Em agosto, as chaves de instituição foram tomadas, enquanto as verbas continuavam congeladas.

Apagamento da memória

“O que esse governo quer é isso mesmo: Acabar com a memória, para colocar qualquer coisa no lugar. Para poderem dizer, até mesmo, que a Terra é plana. É muito desesperador”, apontou, indicando que o caminho é a resistência. “A gente vai tirar força de onde não tem e continuar nessa luta”.

Por Tiago Pereira, da RBA