Contra indígenas, governo Bolsonaro promove retrocesso de 400 anos

Anistia e incentivo à grilagem, estímulo ao garimpo, impunidade ao desmate criminoso, expropriação e fim das demarcações de territórios

TIAGO MIOTTO/CIMI

Gabriel Valery, da RBA

Escrito por: Gabriel Valery, da RBA

Ao falar, em evento durante a semana passada, sobre o sombrio cenário atual em que se encontram os povos indígenas do Brasil sob o governo de Jair Bolsonaro, o engenheiro agrônomo e integrante do Greenpeace Brasil Danicley de Aguiar resume: “a questão indígena não é um problema dos indígenas. Se fosse, estaria tudo certo, todos felizes. Eles não provocam problemas. Falamos de mais de mil povos no ano de 1500 e hoje são pouco mais de 300. Dá para ter noção que o genocídio nunca parou, ele continua em curso.”

Dono de extenso currículo em questões ambientais, Aguiar classifica o governo de Jair Bolsonaro como o promotor dos mais intensos ataques contra os povos indígenas brasileiros em mais de um século. Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei (PL) 490 que dificulta aos indígenas terem suas terras reconhecidas, pode retirar o direito sobre terras já consagradas como indígenas, abre espaço para exploração de áreas demarcadas e desrespeita o direito dos povos de se manterem isolados. “Somos um país agroexportador de commodities, como bem pensaram os colonizadores. Continuamos com trabalho escravo. Problemas que se reproduzem ao longo dos séculos. Com os povos indígenas é a mesma coisa, não tem refresco”, afirma o ativista, em encontro na quarta-feira (4), promovido pelo escritório de advogados Crivelli Associados, de São Paulo.

Retrocesso histórico

O PL 490 se enquadra em um amplo conjunto de outros projetos de ataques aos indígenas. Por exemplo, na última terça-feira (3) a Câmara dos Deputados aprovou o texto base do PL 2.633, o chamado PL da Grilagem de Terras. Na prática, a matéria apoiada com entusiasmo pelo governo Bolsonaro, em parceria com o Centrão, anistia e incentiva invasões de terras indígenas ou públicas. Facilita, inclusive, o registro definitivo de propriedade definitiva para os invasores. “O Parlamento segue priorizando a flexibilização de regras e não a proteção de vidas”, denunciou, durante a votação, a deputada Joenia Wapichana (Rede-RR), única parlamentar indígena da Casa.

Ao comentar sobre o PL, Aguiar demonstra a dificuldade que é medir o tamanho dos retrocessos promovidos pelo governo Bolsonaro contra os indígenas brasileiros. “Tudo que se pensava em maldades está condensado no PL 490. Esse governo que tanto queria voltar para os anos 50, impõe um retrocesso de 400 anos (…) Nesse governo não há espaço pra multiculturalidade. São todos a mesma coisa: tem que rezar, trabalhar… enfim… Isso se choca com tudo que construímos em termo de civilidade no campo jurídico, nos acordos internacionais. Esse é um governo que ignora tudo, não tem a menor preocupação”, protestou.

Inconstitucional

Entre os principais pontos do projeto está a ideia de Marco Temporal, defendida por rualistas. Para o governo Bolsonaro, latifundiários e grileiros, os indígenas só podem ter terras reconhecidas se for comprovado que eles ali estavam na data de promulgação da Constituição Federal, no dia 5 de outubro de 1988. “Quem não estava lá, a terra não é tradicional. A Constituição não diz isso. Mas a bancada ruralista criou essa ideia de que as terras são tudo menos terras indígenas. Essa história do marco temporal é para evitar, inclusive, a recuperação de territórios ancestrais que foram retirados ou pela ditadura, ou territórios que foram grilados”, explica Aguiar.

A medida é considerada inconstitucional pela maior parte dos juristas, incluindo Ericson Crivelli, que mediou a exposição de Aguiar. Crivelli possui larga trajetória com direitos trabalhistas e sindicais. Eles argumentam que a Constituição garante e cobra os governos de realizarem demarcação de territórios tradicionais. Hoje, existe um atraso nestes processos, como explica Aguiar. “O Brasil tem um passivo gigantesco de demarcação de povos indígenas. A lista que se tem hoje é de pelo menos 800 terras indígenas a demarcar. Dessas, a maioria sem qualquer medida tomada. Estão ali navegando no limbo da burocracia estatal. Às vezes nem processo aberto tem. Pouco mais de 500 estão demarcadas”.

“Os direitos indígenas são compreendidos por muitos juristas brasileiros como cláusulas pétreas. Não podem ser alterados por nada, a não ser por uma nova constituinte. São direitos fundamentais, direito ao território. É protegido pelo artigo 60 da Constituição. É uma discussão sem pé nem cabeça, mas a bancada ruralista tem força na Câmara e apoio de um governo que trabalha na lógica de destruição. A lógica é privilegiar o latifúndio”, completa.

Duas pontas

A ideia do Marco Temporal já foi judicializada. O Supremo Tribunal Federal deve decidir sobre a constitucionalidade da matéria. No fim de agosto, dia 25, o Supremo fará um julgamento da repercussão geral do marco temporal, que pode impactar no PL 490. Entretanto, o projeto avança em mais retrocessos.

Mesmo para territórios já reconhecidos por lei, o PL 490 abre precedentes perigosos. “Ataca nas duas pontas. Joga contra terras que precisam ser demarcadas e as já demarcadas (…) Nas terras já demarcadas, ele vai propor a abertura das terras indígenas ao agronegócio. Podem ser feitos contratos com terceiros não indígenas para plantar soja geneticamente modificada nos territórios. Isso hoje não pode. Hoje, o usufruto é exclusivo. O que está demarcado poderá ser aberto ao capital privado. Essa é a proposta colocada. É tão perverso que abre para qualquer atividade econômica, do agronegócio ao garimpo”, explica Aguiar.

Além de autorizar que o interesse de empresas domine as terras indígenas para promover até mesmo atividades altamente corrosivas para o meio ambiente, como a exploração mineral do subsolo, os ataques vão além. O PL 490 libera que interessados nos territórios façam contato com indígenas para propor a exploração. Autoriza esta intervenção, inclusive, nos povos que optaram por se isolar e não mantêm relações fora de seus domínios. “Hoje, a política é de não contato. A bancada ruralista, o Congresso, tenta retomar a política do contato. Contato é dizimação, extermínio, erosão cultural e física desses povos. Não é à toa que eles não querem. Eles sabem que existimos e têm clareza da destruição, gripe sarampo. Isso tem que ser respeitado”.

Quem é indígena?

Hoje, a lei brasileira respeita a autodeterminação da etnia das pessoas. O indígena é reconhecido ao se declarar assim; aldeado ou não. Agora, o PL 490 também destrói essa lógica para avançar sobre territórios dos povos originários. “O PL prevê que se o governo, em dado momento, achar que o índio deixou de ser índio, pode tomar terras de volta. Agora o governo pode dizer quem é índio e quem não é? Por que não é mais índio? Porque usa uma bota de couro? É de um preconceito brutal. Por trás desse preconceito, temos terras que podem ser retomadas ao modelo do agronegócio”, explica Aguiar.

Pária internacional

O genocídio de indígenas e a devastação do meio ambiente pode parecer lucrativo aos ruralistas, apoiadores de primeira hora de Bolsonaro. Entretanto, Aguiar lembra que o efeito pode ser reverso. “Vivemos uma cruzada anti-indígena como poucas vezes vimos. Essa cruzada se soma a uma cruzada contra o meio ambiente. Isso não nos leva para o mundo desenvolvido, de jeito nenhum. Ao contrário, ela nos aprofunda no subdesenvolvimento. Nenhum país vai compreender que o Brasil ‘precisa’ destruir o meio ambiente e suprimir direitos indígenas. Esses projetos são uma pá de cal na reputação deste país”.

Aguiar lembra que países da União Europeia já pediram boicote aos produtos do agronegócio brasileiro em razão do desmatamento desenfreado. O presidente da França, Emmanuel Macron, pediu à comunidade internacional, no início deste ano, que não comprem soja brasileira, um dos principais produtos do agronegócio. “Continuar dependendo da soja brasileira é endossar o desmatamento da Amazônia”, afirmou o presidente.

“Os supermercados europeus já estão se movimentando como podem. Alemanha, França, querem parar de comprar produtos do agronegócio brasileiro. Essa é uma discussão que não tem saída. O consumidor mudou. Não quer saber de consumir recursos que venham com esse tipo de mancha. O mundo mudou. Infelizmente, uma parte do agronegócio brasileiro, uma parte considerável, continua no século 19”, disse Aguiar.

Por sua política de ataques aos indígenas e de destruição ambiental, tramita no Tribunal Penal Internacional uma ação que acusa Bolsonaro de genocídio. O governo também já foi citado oficialmente na Organização das Nações Unidas por “risco de genocídio indígena”.

Discussão civilizatória

A relação dos indígenas com a terra é diferente dos demais seres humanos, em especial os que vivem sob regime de mercado capitalista. Para estes últimos a terra é vista como meio de exploração econômica, os povos indígenas se veem conectados com o ambiente, como parte indissociável dele. “A discussão é civilizatória. A relação deles coloca em xeque o capitalismo. Os indígenas não são pobres nem ricos. Por isso são ‘problemas’ para o capitalismo. Mantê-los sobre o território, garantir seus direitos, é um desafio. Temos muito a aprender com os povos indígenas. Especialmente rever nossa relação com a terra”, afirma Aguiar.

Além desta questão central, o que está imposto ao Brasil pela ideologia de Bolsonaro e de seus pares do Centrão é uma lógica do atraso. O capitalismo tardio, pressionando o país para manter seu papel de colônia, de exploração e desigualdade. “Não existe política de meio ambiente (no atual governo). Isso não é de graça. É um modelo que vai muito além de um ser humano só. Faz parte de um projeto. Tem um modelo, que está se impondo no país, que concentra terra, renda e riqueza. Trabalham dia e noite a favor desse modelo. Precisamos entrar no século 21 e avançar no sentido de transformar o Brasil em um país civilizado”, afirmou Aguiar.

Amanhã será pior

Ao mesmo tempo em que o vê suas florestas e seus indígenas sendo dizimados, também avança no Brasil a desindustrialização. Em vez de avançar em uma economia baseada em produtos manufaturados, que emprega mão de obra qualificada e distribui mais riqueza, o país caminha para aprofundar a lógica do “fazendão”, tendo a produção primária como protagonista. “Não podemos viver em um país mero fornecedor de matéria prima. A indústria recua. Temos um país que tem orgulho de exportar soja e não produz tablet, celular etc. Um país que está recuando na matriz econômica. Em nome desta reprimarização, a bancada ruralista propõe um dos maiores atropelos dos direitos indígenas”.

Por fim, Aguiar alerta que a questão indígena pode parecer distante dos trabalhadores da cidade, mas que a realidade é oposta. Os temas estão conectados pela base. “Se hoje, o que o governo Bolsonaro coloca tenta suprimir são os direitos indígenas, amanhã será o de qualquer trabalhador. Inclusive da classe média. A conta não vai ser paga pelos povos indígenas. Quem acha que esse problema está afastado, não está. A conta será paga por todos. O avanço desse modelo se dá pela destruição de patrimônio natural e supressão de direitos.”

Ao negar o direito à existência do diferente, o governo Bolsonaro caminha no sentido da supressão de direitos de todos os trabalhadores. “Quando você nega a pluralidade, você pode negar a democracia, o direito ao voto. É um sintoma de que esse governo precisa ser combatido. É importante a solidariedade dos trabalhadores, das trabalhadoras, de todos os segmentos, com os povos indígenas do Brasil. Porque hoje são eles, amanhã pode ser qualquer categoria”.

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