Brasil é o país que realiza menos testes e identifica um em cada nove casos. Mandetta afirma que não tem como “testar todo mundo”
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Mandetta: “Vamos testar os trabalhadores da saúde, o que é mais importante no momento”
 
São Paulo – Testar, testar e testar. É o que tem recomendado o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, pelo menos desde o início de março, quando a covid-19 foi declarada pandemia. Seria a receita para os países poderem identificar o ritmo das contaminações e reagir na dose mais correta possível. O Brasil afirmou que seguiria a recomendação, mas o que se vê é o aumento do número de ocorrências. Já são 1.328 mortes e 23.430 casos confirmados. E nada de testes. Ou informações sobre eles.
Levantamento realizado pela organização Open Knowledge Brasil (OKBR), que atua na área de transparência e abertura de dados públicos, aponta que 90% dos estados – mais o governo federal – ainda não publicam dados a respeito da disseminação da pandemia. Apenas um dos 28 entes avaliados trazia informações sobre testes disponíveis.
“O Brasil é um dos países com menos testes junto à população, onde a maioria dos casos não está passando no nosso radar. Não estamos identificando os casos e temos muitas mortes provocadas pela covid-19 que não foram atestadas”, afirmou a sanitarista Lúcia Souto à Rádio Brasil Atual. “Portanto, não temos a capacidade de entender qual o tamanho do problema, o que vai resultar numa superlotação dos serviços de saúde.”

Omissão de diagnóstico

Pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e presidenta do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), ela lembrou que a omissão de diagnóstico é grave, porque deixa transparecer a falsa impressão de que o coronavírus está controlado no país – quando não está.
“Se as pessoas não sentem o problema por perto, elas menosprezam. Essa não testagem na população cria uma cortina de fumaça, uma aparência de que está tudo bem. Isso contribui para o agravamento da pandemia e uma falsa ilusão de tranquilidade”, alertou.
Na tarde de ontem (13), o secretário-executivo do Ministério da Saúde João Gabbardo reforçou o anúncio da doação de 5 milhões de testes rápidos pela mineradora Vale, que deveriam chegar à noite em um voo fretado da China. A pasta já havia anunciado também compra de 22,9 milhões de diagnósticos, ainda em negociação. E quando chegar, não devem ser destinados à testagem da população.
Em entrevista ao programa Fantástico no domingo (12), o ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta afirmou que o Brasil não tem capacidade de fazer testes em 200 milhões de habitantes.
“Vamos testar os trabalhadores da saúde, o que é mais importante no momento. E vamos testar aqueles que precisamos que voltem ao trabalho, porque se um médico ou uma enfermeira já se contaminou e tem os anticorpos, trabalha com muito mais tranquilidade e a gente sabe que ele não vai mais adoecer com aquela doença”.

Baixa notificação

Na realidade, nenhum país testou todos os seus habitantes. Mas a impossibilidade de testar todos não deveria ser desculpa para testar tão pouco.
O ministro disse que serão submetidos a testes trabalhadores da segurança, policiais militares e bombeiros, e que apesar do mercado aquecido – não há testes para todo o planeta –, “o Brasil não está no escuro” em relação ao combate ao avanço da doença.
Segundo Mandetta, modelos matemáticos e estatísticos “permitem dimensionar o ritmo, pra onde está indo, para que faixa etária está se deslocando (o contágio e o adoecimento)”. Mas a ausência de números mais transparente dificulta à sociedade avaliar se dosagem das medidas adotadas está correta.
É bom lembrar que há modelos e modelos. No Centro para Modelagem Matemática de Doenças Infecciosas da Faculdade de Medicina Tropical de Londres, no Reino Unido, um estudo revelou que a subnotificação da covid-19 no Brasil equivale a nove vezes o número de registros.
A situação oposta à recomendação da OMS é colocada com certa naturalidade pelo coordenador da Coordenadoria de Controle de Doenças da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, o infectologista Marcos Boulos.
Em entrevista à Rádio Brasil Atual na tarde desta segunda-feira (13), o especialista afirmou que mesmo que houvesse testes para todos no Brasil, só os realizariam aqueles que fossem procurados pelo serviço de saúde. O problema é que muitos já estão procurando os serviços de saúde, e casos muito sintomático, inclusive de óbitos, estão sem causa confirmada

Muito difícil

“A subnotificação é corriqueira quando se tem doenças infecciosas de grandes dimensões, como é a covid-19. E até que chega o momento que a epidemia está estabelecida o diagnóstico passa a ser clínico e não laboratorial, porque não se consegue dar vazão ao laboratório para todas as pessoas que provavelmente estarão doentes”, afirmou, lembrando que os países que realizaram mais testes são pequenos e com condições financeiras favoráveis, como Singapura e Coreia. “Seria ótimo que nós pudéssemos testar, mas sei que será muito difícil conseguir isso.”

Não faltam dificuldades também em laboratórios públicos responsáveis pela análise das amostras. No último sábado (11), o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) enviou ofício ao Instituto Adolfo Lutz, vinculado à Secretaria Estadual da Saúde, apontando irregularidades na conservação de amostras. “Cerca de 20 mil amostras in natura foram encontradas no Instituto, aguardando processamento para realização de teste para covid-19. Boa parte delas estava em geladeiras indicadas para a conservação desse tipo de amostras por até 72 horas, uma vez que atingem temperaturas entre 4 a 8 graus Celsius”, informa o conselho.
Um servidor do instituto, que falou à RBA na condição de anonimato por temer represálias, afirmou que o governo de João Doria (PSDB) cancelou férias e tentou uma série de arranjos possíveis para ter mais funcionários para dar conta do aumento da demanda. “Não há concursos e muitos vão se aposentando, ou adoecem. Desde 2016 está proibida a compra de todo e qualquer equipamento. Faltam tecnologia, materiais e reagentes. Coisas básicas como álcool. De 2017 para cá o que mais se fala é em fechamento ou privatização do instituto. É muito comum também assédio das indústrias sobre os pesquisadores”, relatou.
“E agora esse escândalo envolvendo as amostras no instituto? É claro que o órgão não suportaria passar por tamanho sucateamento. Todo mundo que é honesto sabe a situação que os governos paulistas vem tratando seus institutos de pesquisa nas últimas décadas”.

Banco de dados

Confira informações sobre testes para covid-19 realizados por diversos países conforme banco de dados da Universidade de Oxford, na Inglaterra. O nível de testes no Brasil não consta da lista.

País Testes por mil pessoas Total da população testada
África do Sul 1,36 80.085
Argentina 0,43 19.758
Austrália 14,26 362.136
Áustria 16,9 148.412
Bahrein 38,74 65.768
Bélgica 9,69 112.613
Canadá 11,23 422.200
Chile 4,45 82.271
Coreia do Sul 10,07 518.743
Costa Rica 1,33 6.690
Rep. Tcheca 12,07 128.359
Dinamarca 12,44 72.099
Equador 1,42 24.553
El Salvador   1,04 6.729
Eslováquia 5,27 28.750
Eslovênia 17,00 35.405
Estados Unidos 8,47 2.805.892
Estônia 23,65 30.764
Filipinas 0,31 33.783
Finlândia 8,23 45.917
França 5,08 333.807
Alemanha 15,97 1.317.887
Gana 1,24 37.954
Grécia 3,36 37.344
Holanda 5,91 101.534
Hungria 3,62 34.819
Islândia 104,27 35.788
Índia 0,13 181.028
Indonésia 0,1 27.391
Irlanda 8,69 42.484
Israel 18,64 162.384
Itália 17,7 1.046.910
Japão 0,61 77.381
Letônia 15,2 28.776
Lituânia 14,55 41.503
Luxemburgo 48,54 29.315
Malásia 2,49 81.730
México 0,2 26.604
Nova Zelândia 13,0 62.827
Noruega 23,36 127.305
Paquistão 0,31 65.114
Peru 2,3 76.506
Polônia 3,64 138.007
Portugal 13,3 135.920
Reino Unido 4,32 290.720
Romênia 3,47 67.204
Rússia 9,46 1.360.000
Senegal 0,17 2.914
Sérvia 2,41 20.958
Singapura 8,0 47.486
Suécia 5,4 54.700
Suíça 22,67 196.600
Taiwan 1,98 47.215
Tailândia 0,47 32.830
Tunísia 0,97 11.498
Turquia   4,9 410.556
Uruguai 2,32 8.114